Artur Pastor no Arquivo Fotográfico, em Lisboa

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Até ao final do mês, no Arquivo Fotográfico de Lisboa, pode ver Fotógrafo Artur Pastor, uma exposição retrospetiva da obra deste fotógrafo, nascido em Alter do Chão em 1922 e falecido em 1999. A presente exposição decorre da incorporação, no acervo do Arquivo Fotográfico de Lisboa, em 2001, do vasto espólio fotográfico de Artur Pastor e, na terça feira passada, foi lançado o catálogo digital.

A exposição é vasta, aliás chega a dividir-se por três núcleos em Lisboa, mas a obra deste fotógrafo mereceria uma reflexão e um melhor conhecimento. O seu trabalho é reflexo da fotografia que se fez em Portugal desde o início do século XX até aos anos 70, para o bem e para o mal. Por isso as imagens mereceriam, em nosso entender, uma maior reflexão. Para já é de saudar a edição do catálogo digital, que tem a vantagem de divulgar mais facilmente o seu trabalho, lamentando-se que não se trate de um verdadeiro catálogo sobre a obra do fotógrafo, mas antes um livro sobre o Portugal daquela época, ilustrado com imagens de Artur Pastor. Graficamente o catálogo está muito bom, para um livro sobre a época, mas a presença (quantidade e dimensão) das imagens apresentadas é tão escassa que verdadeiramente não estamos perante um catálogo que pretende ilustrar a obra de um fotógrafo, e ficamos sem conhecer a maior parte das suas imagens, mesmo que o texto nos pretenda elucidar sobre as mesmas. Mais ainda, a seleção das imagens é simplesmente lamentável e sem critério visível. Algumas imagens existentes na exposição, ou até na projeção, que estéticamente seriam importantes divulgar para se conhecer a obra de Pastor, são esquecidas, mantendo-se a vertente salonista, ou seja mantendo-se uma visão parcial, quiçá deturpada, da obra do fotógrafo apesar dos textos tentarem refutar essa visão.

Artur Pastor é um fotógrafo esteticamente desconcertante. A primeira impressão que temos do seu trabalho é de encerrar contradições compositivas na forma de fotografar. Depois, refletindo, descobrimos-lhe uma primeira fase, de influência picturalista, à qual se segue um período, mais rico, nas décadas de 50 e 60, onde predomina uma abordagem humana alternando com experimentalismos de composição e de perspetiva e que é sobreponível com um olhar de influência surrealista, que ocupa um período breve, e com uma abordagem mais moderna da vida que o rodeia. O lado menos positivo desta carreira foi o prolongar, excessivamente, esse período de ouro das décadas de 50 e 60 e de não ter dado continuídade a outros caminhos estéticos e, principalmente… ter ficado conhecido apenas pela sua vertente salonista. E, como se disse, aqui o catálogo não ajuda. Esta ausência de análise das imagens na sua vertente estética, juntamente com a escassez e seleção das mesmas, é a grande mácula do catálogo. Luís Pavão e Artur Pastor (filho) dão-nos bons textos de enquadramento e que nos permitem conhecer o homem Artur Pastor, conhecimento fundamental para também conhecer o trabalho do fotógrafo Artur Pastor. O texto de Ana Saraiva começa num tom biográfico interessante, mas rapidamente cai na enumeração acrítica de participações em concursos da época, e o texto de Marcos Fernandes começa mal. Ou bem que se pretende fazer um livro de História da Fotografia ou estamos perante o catálogo de Artur Pastor. Num texto com o título “A fotografia dos anos 40, 50 e 60. Espaço para o Humanismo, Neorrealismo, Reportagem Subjetiva…”, abrimos com o daguerreotipo em 1839, e caminhamos falando de Paris e da fotografia humanista, que Pastor não praticou. Referem-se correntes e movimentos que Pastor não seguiu. Para quê? Para se subentender que não os praticou? Por que razões? Salva-se o enquadramento clubístico e dos Salões, e as opções estéticas dessa época por parte de alguns fotógrafos. Mas então porque não analizar mais profundamente a obra de Pastor?

A ligação de Artur Pastor à fotografia faz-se da necessidade de documentar a tese de final do curso de regente agrícola, vindo a realizar a sua primeira exposição em Faro (Motivos do Sul, 1946), seguindo-se outras em Évora e Setúbal. A exposição de 1946 corresponde à primeira fase do seu trabalho, de forte influência picturalista, tardia e já desajustado com a realidade internacional, mas próximo do que na mesma época fazia Frederico Bonacho dos Santos na Golegã. Nela existe um assumido distanciamento em relação à realidade, na tradição da última fase do picturalismo, com impressões mais pequenas, coladas em cartolinas, com o recurso aos efeitos de luz (contraluz p. ex.) e com o uso de tonalidades dadas pela manipulação laboratorial (viragens a sepia e a azul, esfumados, etc.), o que nos é mostrado agora no primeiro andar do Arquivo.

Em 1953 Artur Pastor torna-se associado do Foto Clube 6×6, antecessor da APAF. Participou em inúmeros concursos e exposições e publicou dois álbuns Nazaré (1958) e Algarve (1965), tendo colaborado em diversas publicações nacionais e estrangeiras, nomeadamente na Enciclopédia Focal de Fotografia, onde tem uma entrada sobre Portugal. Nela vemos que o seu mundo fotográfico se resume “aos amadores” dos Salões e aos “profissionais”, presumivelmente de casa aberta, mas ignorando quaisquer movimentos artísticos ou influências externas. O aspeto mais significativo daqueles álbuns é o seu caracter inovador de conferirem à imagem um peso significativo. Embora longe de algumas experiências gráficas da década de 30, a ideia do predomínio da imagem com fotografias a página inteira e de um grafismo cuidado, aliado à iniciativa de edição, constitui uma proeza numa época em que as edições dedicadas à fotografia eram escassas, como de resto a exposição refere.

Se algo ressalta nas imagens de Pastor é a sua grande paixão pela fotografia, o que pode ser visto no que consegue transmitir nas suas imagens: esforço, alegria, tensão. Especialmente nas imagens da pesca revela um extraordinário sentido do momento certo (Victória, 1943-45; na faina da pesca,1953) e o recurso à incorporação de primeiros planos para dar profundidade, algo também pouco comum na maioria dos fotógrafos (saída para o mar, 1954-57; varinas à espera,1954-57; banho santo, 1953).

Ainda assim, nas suas imagens predomina a composição clássica (puxando a arte da xávega, 1943-45), com grande rigor técnico, o que se nota especialmente no retrato (acabado de pescar, 1954-57; fiando, década de 50). A sua grande inovação, e na fotografia portuguesa da época isso é de destacar, passa pela encenação, desde imagens mais tradicionais (namoro barrosão, década de 50) até imagens onde a utilização do espaço fotográfico demonstra um olhar muito mais moderno (a imagem que apresentamos Lisboa, conversa de mulheres, 1950). Para além do cuidado posto nos cenários, sempre muito bem planeados, um dos aspetos mais sedutores e intrigantes deste fotógrafo são estas duas abordagens, uma mais clássica e mais conservadora e outra mais inovadora, rompendo com os cânones da época, ambas coincidentes num dado período da carreira e provavelmente derivadas de influências que era interessante conhecer melhor para estudar a sua obra. Aliás, era interessante saber que imagens Artur Pastor via, ou por que forma lhe chegaria essa influência. A imagem de Sesimbra (lota dos pescadores, 1943-60) ou da Póvoa do Varzim (construções na areia, 1955-70), recorrem ao enquadramento picado da Moscovo de Alexander Rodchenko, no final da década de 20, uma forma de enquadrar não não se vê na fotografia portuguesa dessa época.

Ressalta do trabalho de Artur Pastor a significativa quantidade e organização das imagens produzidas, constituindo hoje um importante registo da sua época, com uma importância sociológica ímpar, pelo registo de hábitos e práticas hoje desaparecidos. O regime político usou a fotografia de Artur Pastor em seu favor. Nas suas imagens predomina um povo trabalhador, alegre, ordeiro e orgulhoso da tradição. Era a mensagem que se devia destacar na fotografia feita na época. De qualquer das formas, as imagens de Pastor vão evoluindo para uma visão mais consciente socialmente, com uma maneira de fotografar mais solta, passando por uma fase algo épica das gentes fotografadas. Denominador comum são as atividades tradicionais e a dimensão humana expressa, que pode ser vista na vontade de enaltecer o povo que fotografa, nunca abraçando o neo-realismo de gentes miseráveis. A exposição de 1970 permite verificar esta evolução.

A obra de Artur Pastor, talvez por desconhecimento ou preconceito, tem levado a que não tenha merecido a devida atenção. Um preconceito que infelizmente é alimentado por expressões existentes na exposição, nas apresentações ou no catálogo. “O domador da Rolleiflex”, ainda que possa ser uma expressão do grande fotógrafo Augusto Cabrita, é uma delas, hoje desajustada. E se, por um lado, alinhou num salonismo predominante, também tem elementos inovadores, que mereceriam a devida atenção. Infelizmente não constam do catálogo e no Arquivo Fotográfico não estão expostas as imagens das Avenidas Novas, em Lisboa, que apenas vimos em projeção. São imagens extraordinárias de modernidade, pelos enquadramentos, ângulos procurados e ambiência conseguida, a fazerem lembrar alguns nomes da fotografia portuguesa dessa época, mais conhecidos e consagrados.

E se existe um núcleo completamente desconcertante ele é o grupo das imagens dedicadas à publicidade. Uma vez mais, se é verdade que são muito diferentes do que se fazia em alguma fotografia de publicidade, mesmo anos depois, numa prática técnica seguida por alguns profissionais com estúdio aberto, elas têm abordagens de luz que fazem lembrar as imagens de publicidade feitas nos EUA, Alemanha ou Inglaterra nas décadas de 20 e 30. Aproximam-se dos movimentos surrealistas, o que para a realidade internacional estará desfasado no tempo, mas curiosamente em linha com a chegada do surrealismo a Portugal, e com a sua entrada mais tardia na fotografia, e de que só temos Fernando Lemos como referência. Seriam imagens também a merecerem alguma reflexão. Uma vez mais o catálogo ignora isso.

A fase menos conseguida da sua carreira é claramente o período da fotografia a cor com finalidade turística, mas que começa a desenhar-se com a exposição de 1986 (Lisboa, Palácio Galveias), onde adota os mesmos cânones dos Salões, nomeadamente a grande quantidade de provas expostas e a forma de expor, típica dos anos 50 e 60, ainda que curiosamente, em 1987, Artur Pastor recuse realizar uma exposição em Évora por as fotografias não serem emolduradas. Foi uma exposição que mostrou motivos do passado num país que o tentava esquecer, iniciando um período de desenvolvimento económico, acompanhada por um folheto, opção então ainda muito em voga em certos círculos próximos dos Salões, quando a Galeria Éther, fundada em 1982, já editava cuidados desdobráveis ou os Encontros de Fotografia de Coimbra, existentes a partir de 1980, começavam uma política de edição. António Lopes

Catálogo em http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/fotos/produtos/catalogoarturpastor_76694821053eb38131caac.pdf

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